Decisão:
1. Trata-se de reclamação, com
pedido liminar, ajuizado pela Presidente da República, em face de decisão
proferida pelo juízo da 13ª Vara Federal da Subseção Judiciária de Curitiba,
nos autos de “Pedido de Quebra de Sigilo de Dados e/ou Telefônicos
5006205-98.2016.4.04.7000/PR”.
Em linhas gerais, alega-se que
houve usurpação de competência do Supremo Tribunal Federal, pois:
a) no curso de interceptação
telefônica deferida pelo juízo reclamado, tendo como investigado principal Luiz
Inácio Lula da Silva, foram captadas conversas mantidas com a Presidente da
República;
b) o magistrado de primeira
instância, “ao constatar a presença de conversas de autoridade com prerrogativa
de foro, como é o caso da Presidenta da República, [...] deveria encaminhar essas
conversas interceptadas para o órgão jurisdicional competente, o Supremo
Tribunal Federal”, nos termos do art. 102, I, b, da Constituição da República;
(c) “a decisão de divulgar as conversas da Presidenta - ainda que encontradas
fortuitamente na interceptação - não poderia ter sido prolatada em primeiro
grau de jurisdição, por vício de incompetência absoluta” e
d) “a comunicação envolvendo a
Presidenta da República é uma questão de segurança nacional (Lei n. 7.170/83),
e as prerrogativas de seu cargo estão protegidas pela Constituição”.
Postulou, liminarmente, a
suspensão imediata dos efeitos da decisão proferida em 16.3.2016 no dito
procedimento e, ao final, seja anulada a decisão reclamada, determinando-se a
remessa dos autos ao Supremo Tribunal Federal.
Ato contínuo, por meio de petição
protocolada sob número 13698/2016, a reclamante apresentou aditamento à petição
inicial e alegou, em síntese, que
(a) “segundo divulgado pela
imprensa […] o juízo federal da 13ª Vara Federal de Curitiba houve por bem suspender
o envio a essa Corte Suprema dos inquéritos que tratam dos fatos que ensejam as
medidas de interceptação, limitando-se apenas a encaminhar os dados da quebra
de sigilo telefônico do ex-Presidente Luis Inácio Lula da Silva”;
(b) o magistrado reclamado não
teria competência para definir “o conjunto de inquéritos ou processos judiciais
em curso que devem ou não ser remetidos ao exame do Pretório Excelso, única
Corte de Justiça apta juridicamente a proceder a esse exame”.
Requereu, assim, que seja determinado
ao juízo reclamado “a remessa de todos os inquéritos e processos judiciais em
curso que tratam dos fatos que ensejaram as interceptações telefônicas em que
foram registrados diálogos da Sra. Presidente da República, dos Srs. Ministros
de Estado e de outros agentes políticos porventura dotados de prerrogativa de
foro”.
2. A
concessão de medida liminar também no âmbito da reclamação (arts. 158 do RISTF
e 989, II, do Código de Processo Civil) pressupõe, além da comprovação da
urgência da medida, a demonstração da plausibilidade do direito invocado,
requisitos que no caso se mostram presentes.
3. O presente caso traz, em sua
gênese, matéria que esta Suprema Corte já reconheceu como de sua competência no
exame das Ações Penais 871-878 e procedimentos correlatos, porém procedendo à
cisão do feito, a fim de que seguissem tramitando, no que pertine a envolvidos
sem prerrogativa de foro, perante o juízo reclamado, sem prejuízo do exame de
competência nas vias ordinárias (AP 871 QO, Relator(a): Min. TEORI ZAVASCKI,
Segunda Turma, julgado em 10/06/2014, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-213 DIVULG
29-10-2014 PUBLIC 30-10-2014).
4. É certo que eventual encontro
de indícios de envolvimento de autoridade detentora de foro especial durante
atos instrutórios subsequentes, por si só, não resulta em violação de
competência desta Suprema Corte, já que apurados sob o crivo de autoridade
judiciária que até então, por decisão da Corte, não violava competência de foro
superior (RHC 120379, Relator(a): Min. LUIZ FUX, Primeira Turma, DJe 24-10-2014;
AI 626214-AgR, Relator(a): Min. JOAQUIM BARBOSA, Segunda Turma, DJe 08-10-2010;
HC 83515, Relator(a): Min. NELSON JOBIM, Tribunal Pleno, DJ 04-03-2005; Rcl
19138 AgR, Relator(a): Min. TEORI ZAVASCKI, DJe de 18-03-2015 e Rcl 19135 AgR,
Relator(a): Min. TEORI ZAVASCKI, DJe de 03-08-2015; Inq 4130-QO, Relator(a):
Min. DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 23-9-2015).
5. O exame dos autos na origem
revela, porém, ainda que em cognição sumária, uma realidade diversa. Autuado,
conforme se observa na tramitação eletrônica, requerimento do Ministério
Público de interceptação telefônica, em 17.2.2016, “em relação a pessoas
associadas ao ex-Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva (eventos 1 e
2)”, aditado em 18.2.2016, teve decisão de deferimento em 19.2.2016 e
sucessivos atos confirmatórios e significativamente ampliativos, em 20.2.2016,
26.2.2016, 29.2.2016, 3.3.2016, 4.3.2016 e 7.3.2016, sempre com motivação
meramente remissiva, tornando praticamente impossível o controle, mesmo a
posteriori, de interceptações de um sem número de ramais telefônicos.
6. Embora a
interceptação telefônica tenha sido aparentemente voltada a pessoas que não
ostentavam prerrogativa de foro por função, o conteúdo das conversas – cujo
sigilo, ao que consta, foi levantado incontinenti, sem nenhuma das cautelas
exigidas em lei – passou por análise que evidentemente não competia ao juízo
reclamado: “Observo que, em alguns diálogos, fala-se, aparentemente,
em tentar influenciar ou obter auxílio de autoridades do Ministério Público ou
da Magistratura em favor do ex-Presidente. Cumpre aqui ressalvar que não há
nenhum indício nos diálogos ou fora deles de que estes citados teriam de fato
procedido de forma inapropriada e, em alguns casos, sequer há informação se a
intenção em influenciar ou obter intervenção chegou a ser efetivada.
Ilustrativamente, há, aparentemente, referência à obtenção de alguma influência
de caráter desconhecido junto à Exma. Ministra Rosa Weber do Supremo Tribunal
Federal, provavelmente para obtenção de decisão favorável ao ex-Presidente na
ACO 2822, mas a eminente Magistrada, além de conhecida por sua extrema honradez
e retidão, denegou os pleitos da Defesa do ex-Presidente. De igual forma, há
diálogo que sugere tentativa de se obter alguma intervenção do Exmo. Ministro
Ricardo Lewandowski contra imaginária prisão do ex-Presidente, mas sequer o
interlocutor logrou obter do referido Magistrado qualquer acesso nesse sentido.
Igualmente, a referência ao recém nomeado Ministro da Justiça Eugênio Aragão
(‘parece nosso amigo’) está acompanhada de reclamação de que este não teria
prestado qualquer auxílio. Faço essas referências apenas para deixar claro que
as aparentes declarações pelos interlocutores em obter auxílio ou influenciar
membro do Ministério Público ou da Magistratura não significa que esses últimos
tenham qualquer participação nos ilícitos, o contrário transparecendo dos
diálogos. Isso, contudo, não torna menos reprovável a intenção ou as tentativas
de solicitação.”
7. Enfatiza-se que, segundo reiterada jurisprudência desta Corte, cabe
apenas ao Supremo Tribunal Federal, e não a qualquer outro juízo, decidir sobre
a cisão de investigações envolvendo autoridade com prerrogativa de foro na
Corte, promovendo, ele próprio, deliberação a respeito do cabimento e dos
contornos do referido desmembramento (Rcl 1121, Relator(a): Min. ILMAR
GALVÃO, Tribunal Pleno, julgado em 04/05/2000, DJ 16-06-2000 PP-00032 EMENT
VOL-01995-01 PP-00033; Rcl 7913 AgR, Relator(a): Min. DIAS TOFFOLI, Tribunal
Pleno, julgado em 12/05/2011, DJe-173 DIVULG 08-09-2011 PUBLIC 09-09-2011 EMENT
VOL-02583-01 PP-00066). No caso em exame, não tendo havido prévia decisão desta
Corte sobre a cisão ou não da investigação ou da ação relativamente aos fatos
indicados, envolvendo autoridades com prerrogativa de foro no Supremo Tribunal
Federal, fica delineada, nesse juízo de cognição sumária, quando menos, a
concreta probabilidade de violação da competência prevista no art. 102, I, b,
da Constituição da República.
8. Diante da relevância dos
fundamentos da reclamação, é de se deferir a liminar pleiteada, para que esta
Suprema Corte, tendo à sua disposição o inteiro teor das investigações
promovidas, possa, no exercício de sua competência constitucional, decidir
acerca do cabimento ou não do seu desmembramento, bem como sobre a legitimidade
ou não dos atos até agora praticados.
9. Procede, ainda, o pedido da
reclamante para, cautelarmente, sustar os efeitos da decisão que suspendeu o
sigilo das conversações telefônicas interceptadas. São relevantes os fundamentos
que afirmam a ilegitimidade dessa decisão. Em primeiro lugar, porque emitida
por juízo que, no momento da sua prolação, era reconhecidamente incompetente
para a causa, ante a constatação, já confirmada, do envolvimento de autoridades
com prerrogativa de foro, inclusive a própria Presidente da República. Em
segundo lugar, porque a divulgação pública das conversações telefônicas
interceptadas, nas circunstâncias em que ocorreu, comprometeu o direito
fundamental à garantia de sigilo, que tem assento constitucional. O art. 5º,
XII, da Constituição somente permite a interceptação de conversações
telefônicas em situações excepcionais, “por ordem judicial, nas hipóteses e na
forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual
penal”. Há, portanto, quanto a essa garantia, o que a
jurisprudência do STF denomina reserva legal qualificada. A lei de
regência (Lei 9.269/1996), além de vedar expressamente a
divulgação de qualquer conversação interceptada (art. 8º), determina a
inutilização das gravações que não interessem à investigação criminal (art. 9º).
Não há como conceber, portanto, a
divulgação pública das conversações do modo como se operou, especialmente
daquelas que sequer têm relação com o objeto da investigação criminal. Contra
essa ordenação expressa, que – repita-se, tem fundamento de validade
constitucional – é descabida a invocação do interesse público da divulgação ou
a condição de pessoas públicas dos interlocutores atingidos, como se essas
autoridades, ou seus interlocutores, estivessem plenamente desprotegidas em sua
intimidade e privacidade. Quanto ao ponto, vale registrar o que afirmou o
Ministro Sepúlveda Pertence, em decisão chancelada pelo plenário do STF (Pet
2702 MC, Relator(a): Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Tribunal Pleno, julgado em
18/09/2002, DJ 19-09-2003 PP-00016 EMENT VOL-02124-04 PP-00804), segundo a
qual: “62. [A] garantia do sigilo das diversas modalidades técnicas de
comunicação pessoal - objeto do art. 5°, XII - independe do conteúdo da
mensagem transmitida e, por isso - diversamente do que têm afirmado autores de
tomo, não tem o seu alcance limitado ao resguardo das esferas da intimidade ou
da privacidade dos interlocutores. 63. ‘Por el contrario’ - nota o lúcido Raúl
Cervini (L. Flávio Gomes Raúl Cervini Interceptação Telefônica,. ed RT, 1957,
p. 33), ‘el secreto de las comunicaciones aparece en las Constituciones
modernas – e incluso se infiere en la de Brasil - con una construcción
rigurosamente formal. No se dispensa el secreto en virtud del contenido de la
comunicación, ni tiene nada que ver su protección com el hecho a estas efectos
jurídicamente indiferente – de que lo comunicado se inscriba o no en el ámbito
de la privacidad. Para la Carta Fundamental, toda comunicación es secreta, como
expresión transcendente de la libertad, aunque sólo algunas de ellas puedan
catalogarse de privadas. Respecto a este tema há sido especialmente
clarificador el Tribunal Constitucional Espanõl al analizar el fundamento
jurídico de una norma constitucional de similares características estructurales
al art. 5 XII de la Constitución Brasileña. Há señalado el Alto Tribunal que la
norma constitucional establece una obligación de no hacer para los poderes
públicos, la que debe mostrarse eficaz com independencia del contenido de la
comunicación, textualmente: ‘el concepto de ‘secreto’ en el art. 18, 3°. (de la
Constitución española) tiene un carácter ‘formal’ em el sentido de que se
predica de lo comunicado, sea cual sea su contenido y pertenezca o no el objeto
de la comunicación misma al ámbito de lo personal, lo íntimo o lo reservado’.
Agrega más adelante que sólo desligando la existencia del Derecho de la
cuestión sustantiva del conteniclo de lo comunicado puede evitarse caer en la
inaceptable aleatoriedad en su reconocimiento que llevaría la confusón entre
este Derecho y el que protege la intimidad de las personas’. 64. Desse modo - diversamente do que sucede nas
hipóteses normais de confronto entre a liberdade de informação e os direitos da
personalidade - no âmbito da proteção ao sigilo das comunicações, não há como
emprestar peso relevante, na ponderação entre os direitos fundamentais
colidentes, ao interesse público no conteúdo das mensagens veiculadas, nem à
notoriedade ou ao protagonismo político ou social dos interlocutores”.
10. Cumpre enfatizar que não se adianta aqui qualquer juízo sobre a
legitimidade ou não da interceptação telefônica em si mesma, tema que não está
em causa. O que se infirma é a divulgação pública das conversas
interceptadas da forma como ocorreu, imediata, sem levar em consideração que a
prova sequer fora apropriada à sua única finalidade constitucional legítima
(“para fins de investigação criminal ou instrução processual penal”), muito
menos submetida a um contraditório mínimo. A
esta altura, há de se reconhecer, são irreversíveis os efeitos práticos
decorrentes da indevida divulgação das conversações telefônicas interceptadas.
Ainda assim, cabe deferir o pedido no sentido de sustar imediatamente os
efeitos futuros que ainda possam dela decorrer e, com isso, evitar ou minimizar
os potencialmente nefastos efeitos jurídicos da divulgação, seja no que diz
respeito ao comprometimento da validade da prova colhida, seja até mesmo quanto
a eventuais consequências no plano da responsabilidade civil, disciplinar ou
criminal.
11. Nos atos ampliativos antes
referidos, encontra-se decisão datada de 26.2.2016, em que é autorizada a
interceptação telefônica de advogado sob o fundamento de que estaria “minutando
as escrituras e recolhendo as assinaturas no escritório de advocacia dele”.
Aparentemente, é só em 16.3.2016 que surge efetiva motivação para o ato:
“Mantive nos autos os diálogos interceptados de Roberto Teixeira, pois, apesar
deste ser advogado, não identifiquei com clareza relação cliente/advogado a ser
preservada entre o ex-Presidente e referida pessoa. Rigorosamente, ele não
consta no processo da busca e apreensão 5006617-29.2016.4.04.7000 entre os
defensores cadastrados no processo do ex-Presidente. Além disso, como
fundamentado na decisão de 24/02/2016 na busca e apreensão (evento 4), há
indícios do envolvimento direto de Roberto Teixeira na aquisição do Sítio em
Atibaia do ex-Presidente, com aparente utilização de pessoas interpostas. Então
ele é investigado e não propriamente advogado. Se o próprio advogado se envolve
em práticas ilícitas, o que é objeto da investigação, não há imunidade à
investigação ou à interceptação.” Sem adiantar exame da matéria, constata-se
ser ela objeto de petição nos autos de Pet 5.991, a qual, com a presente
decisão, sofre, no que diz respeito à jurisdição do STF, perda superveniente de
interesse processual, devendo ser arquivada.
12. Ante o exposto, nos termos
dos arts. 158 do RISTF e 989, II, do Código de Processo Civil, defiro a liminar para determinar a
suspensão e a remessa a esta Corte do mencionado “Pedido de Quebra de Sigilo de
Dados e/ou Telefônicos 5006205-98.2016.4.04.7000/PR” e demais procedimentos
relacionados, neles incluídos o “processo 5006617-29.2016.4.04.7000 e conexos”
(referidos em ato de 21.3.2016), bem assim quaisquer outros aparelhados com o
conteúdo da interceptação em tela, ficando determinada também a sustação dos
efeitos da decisão que autorizou a divulgação das conversações telefônicas
interceptadas. Comunique-se com urgência à autoridade reclamada, a fim de que,
uma vez tendo cumprido as providências ora deferidas, preste informações no
prazo de até 10 (dez) dias. Com informações ou decorrido o prazo, abra-se vista
dos autos ao Procurador-Geral da República (arts. 160 do RISTF e 991 do Código de
Processo Civil) e voltem conclusos para julgamento. Junte-se cópia desta
decisão nos autos de Pet 5.991, arquivando-se aqueles. Publique-se. Intime-se.
Brasília, 22 de março de 2016 Ministro Teori Zavascki Relator Documento
assinado digitalmente
(Rcl 23457 MC, Relator(a): Min.
TEORI ZAVASCKI, julgado em 22/03/2016, publicado em PROCESSO ELETRÔNICO DJe-057
DIVULG 29/03/2016 PUBLIC 30/03/2016)
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